Eduardo Paz Ferreira foi durante muitos anos um amigo quase mítico, pois eu nem o conhecia pessoalmente. Fazia parte do quadrunvirato açoriano, que costumo chamar “a ínclitageração” do Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, juntamente com Jaime Gama, José Medeiros Ferreira e Mário Mesquita. Essa geração inclui ainda outros nomes de vulto como os do escritor Cristóvão de Aguiar e o medico Germano de Sousa, mas estes foram estudar para Coimbra e, nas suas áreas de trabalho, não se envolveram diretamente na vida política nacional. Também da mesma geração, e interveniente na política, é João Bosco Mota Amaral, que cedo regressou aos Açores, embora mais tarde tivesse passado vários anos em Lisboa como deputado e depois Presidente da Assembleia da República.

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Voltando a Eduardo Paz Ferreira, foi Mário Mesquita quem nos aproximou. Nas minhas passagens pela capital, o Mário gostava de juntar à mesa amigos com uns, assim criando relacionamentos novos. Aos poucos, o universo cultural e afe- tivo de Eduardo Paz Ferreira foi-se entrelaçando com o meu. Como nunca me sentia traído pelo Direito (exceto num curto período na Brown University em que fui aluno-assistente de uma cadeira de Filosofia do Direito), e muito menos pelo Direito Fiscal (de que só sei pronunciar e escrever o nome da disciplina), quem me ouve neste momento poderá interrogar-se sobre como terá sido então possível ficarmos amigos. Confesso que em parte foi o facto de sermos açorianos e estar- mos fora do arquipélago. O poeta terceirense Álamo Oliveira diz num verso que os ilhéus se dão as mãos para se fazerem flutuar. Não foi o caso porque o Eduardo é um grande nadador, mas o factor Açores foi fundamental. Um outro amigo Eduardo – Eduardo Lourenço – dizia que os açorianos em Lisboa eram uma máfia. Não, não eram. Havia-os – e há-os, está visto – em todos os quadrantes, contudo estavam e estão tão ligados ou separados como entre si estão os lisboetas, os por- tuenses, os madeirenses, ou os portugueses em geral. Pedro da Silveira ou Natália Correia, para dar apenas dois exemplos, defenderam sempre os Açores, todavia não consigo imaginá-los associados a Eduardo Paz Ferreira, Mário Mesquita ou Jaime Gama. E mesmo estes quarto seguiram cada qual o seu caminho.

No meu caso, a açorianidade de amigos comuns proporcionou de facto os con- tatos iniciais, contudo foi a figura do cidadão (nem sequer a do académico por- que, como atrás disse, nada sei das áreas científicas que apaixonam o Eduardo) que particularmente me tocou e continua a tocar.

O grande sociólogo alemão Max Weber viveu períodos de conturbada agita- ção política na sua universidade e defendeu que as ciências sociais deveriam ser livres de valores, isto é, libertas ou isentas de valores pessoais. O cientista deveria fazer análises científicas e deixar de lado os seus valores (como se tal fosse de todo possível, muito embora deva ser um ideal); e, no entanto, foi aguerridamente de- fendido no meu tempo de estudante de pós-graduação). Weber não imaginava académicos desprovidos de convicções políticas, apenas achava que eles deveriam evitar propagá-las, defendê-las, ou simplesmente emiti-las nas aulas. Estabeleceu assim a célebre distinção da figura académica entre qua cientista e qua cidadão. Qua – ou enquanto– cientista, o académico deveria colocar entre parêntesis os seus valores; na vida fora das aula, qua cidadão – enquanto pessoa cívica – teria o direito e o dever de intervir politicamente.

Como não fui seu aluno, não posso falar das suas aulas. Desconheço se o Eduardo seguia o conselho de Max Weber. O que conheço, porém, e disso tenho abundantes provas, é a sua postura como cidadão. (Entre parênteses, devo dizer que não imagino as suas aulas monótonas ou monocórdicas. Aposto mesmo que nunca poderia acontecer um diálogo do género ocorrido com um professor de Engenharia numa universidade em Boston. Ao notar que uma aluna estava a dormir, disse para o colega ao lado dela: Importa-se de acordar a sua colega? O aluno respondeu: Eu?! Acorde-a o senhor que foi quem a pôs a dormir!)

Pois foi de facto na vertente qua cidadão de Eduardo Paz Ferreira que a minha amizade com ele evoluiu e se intensificou.

Passei a ser leitor e admirador das suas preocupações sociais, da sua frontalidade e coragem, mas também da sua escrita direta, sem rodriguinhos, por vezes acutilante, chamando os bois pelos seus nomes. Estão aí a comprová-lo li- vros como as Crónicas dos anos de chumbo (2008-2013), ou Encostados à Parede e Como Salvar um Mundo Doente. Os títulos só por si já revelam essas caraterísticas que apontei na sua escrita. Terminada a leitura de Como Salvar um Mundo Doente disparei para o autor o seguinte email:

Estou de regresso há duas semanas, mas isto tem sido demasiado intenso e não tem dado para dar sinal da minha leitura.

Li o teu livro com imenso gosto e proveito. Está ali um conjunto compacto de informação imensa sobre este nosso tempo, com uma serena análise num tom positivo, pragmático, que me agrada imenso porque em vez de apenas se emaranharem críticas, tem o discernimento inteligente de direcionar o leitor para o futuro em cata de caminhos para sairmos deste imbróglio.

Não é qualquer que, vindo da área do Direito, consegue escrever um português da- queles porque a de formação profissional não deixa que se libertem do jargão. O teu português é de asa delta. A gente voa sobre as páginas em sereno silêncio sem ouvir o barulho das frases.

Encostados à Parede é outro exemplo do fôlego do nosso homenageado, da abrangência das suas preocupações e dos largos horizontes da sua mundividência. O livro revela a atenção que Eduardo Paz Ferreira dá às grandes questões nacio- nais, europeias e mundiais e reflete bem o amplo âmbito das suas leituras. Lê vorazmente, a ajuizar pelas referências às obras de autores contemporâneos preo- cupados em chamar a atenção dos distraídos para sérios problemas que ameaçam a mera manutenção do estado atual dos estados modernos, cujas instituições até aqui pareciam solidamente estrutura das e agora revelam preocupantes fraque- zas e riscos de soçobrarem. Esta sua atenção a influentes autores que entabulam diálogos a nível mundial foi-me confirmada quando soube que o Eduardo tinha convidado o meu colega Mark Blyth para fazer uma conferência em Lisboa. Mark Blyth é Professor e Diretor do Rhodes Center for International Economics no Watson Institute for International Studies da Brown University. Poderá parecer um pormenor despiciendo, todavia para mim não é. Revela bem quão atento está o Eduardo aos debates internacionais do momento e ao trabalho dos grandes intervenientes na conversação sobre algumas das mais importantes questões transversais.

Não vou alongar-me mais. O Eduardo está incomodado com o facto de a legis- lação vigente o ter obrigado à jubilação. Nos EUA ela não acontece e por isso eu já vou com sete anos mais de ensino para além da data em que ele se viu obrigado a abandonar a carreira. Mas se calhar a sua Francisca acabaria por fazer o que a minha Leonor me fez: convencer-me a fechar a porta para aproveitarmos os anos que nos restam, a fim de gozarmos a vida enquanto houver saúde. Sei que ele não conseguirá nunca deixar de se envolver apaixonadamente em debates, nem de se consumir com os males do mundo e de publicamente se pronunciar e propor soluções. Mas na verdade é ajuizado abrandar o ritmo para se poder prolongar um pouco mais a década dos 70 anos na carreira de uma vida. Por isso, aproveita, meu caro Eduardo. Passa mais tempo na nossa bela ilha de S. Miguel, como eu tenho procurado fazer. E não te esqueças de que não precisas de comprar guarda- sol nem cadeiras praia. Deixaste-os comigo porque tencionavas voltar este verão passado. A verdade, porém, é que não apareceste. Estão lá à tua espera. Esta vida são dois dias e o primeiro já passou, como sói dizer-se. Mereces descansar mais. E acho que a Francisca concorda comigo.

De qualquer modo, muito obrigado por tudo aquilo que contigo venho aprendendo. E que tenhas ainda muitos anos de saudável vida para poderes desfrutar de muitos verões de praia nos Açores.

OnésimoTeotónio Almeida

 

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